Os afetos. Este texto deveria ser
um relato de viagem, nem sei se à moda de Caminha ou de Kerouac, mas não será
mais do que as minhas impressões sobre os 7130 km percorridos ao lado de três
amigos, três irmãos. Partimos de Juazeiro do Norte um pouco mais que às seis da
manhã do dia 28 de dezembro de 2013. Elandia, Ythallo, Batata e eu. Amizades
construídas por alguns muitos anos e que se mostraram fortes nesses últimos 24
dias, nas estradas que percorremos. Não tínhamos dinheiro. Não tínhamos GPS.
Não tínhamos ambição alguma. Alguns sonhos moviam nossa travessia. Sonhos
íntimos e sonhos coletivos. Era uma busca, a qual estávamos entregues
completamente. Dois filmes e a estrada. Chegamos a João Pessoa e nos instalamos
na casa de outros irmãos nossos, de longo tempo. Uma noite apenas na capital
paraibana e já descobrimos ali a tônica da viagem inteira: planos, discussões e
risadas, muitas risadas. Começamos na Parahyba nosso documentário
“Coração-travessia: poetas na estrada”. A poesia no meio de tudo isso: fosse
encarnada em palavras, em imagens ou em descobertas. Descobertas de caminhos,
de paisagens, de limites, deslimites. Encontramos em cada lugar, em paradas de
almoço, de café ou de jantar, em músicas tocadas no som do carro, um motivo
para seguirmos em frente e seguros de que aquela seria a primeira grande viagem
de nossas vidas. Em Penedo, às margens do Rio São Francisco, chegamos ainda
felizes em termos conhecido a primeira grande figura de uma viagem repleta
delas: Alisson, em Maceió, amigo de Judson, outro nosso irmão. Ficamos na
antiga cidade do velho Chico durante três dias. Lá, demos início a ficção
“Coração batente por debaixo de tudo”. Fizemos grandes sequencias do nosso
filme e tivemos uma memorável festa de virada de ano. Os quatro, fizemos um
churrasco, regido por Batata e regado a deliciosas cachaças. A cada dia juntos
víamos detalhes de nós mesmos que só uma família pode enxergar, os defeitos e
as qualidades. Lembro com muita felicidade do cuidado de Batata ao montar e
desmontar os equipamentos de som, a todo momento que usávamos; o perfeccionismo
de Ythallo ao montar o foco da câmera e montar o quadro da sequencia a ser
filmada; o esmero de Elandia com todos nós, com seu “carinho bruto” e afetuoso
por tudo. Talvez seja isso que mais guardei nessa viagem. Seguimos para a Bahia
depois de atravessar o Rio São Francisco numa balsa carregada de esperanças e
desejos ainda. Os sonhos revoltavam em nós. Paramos em Cachoeira para dormir,
uma cidade escondida e perdida no meio da Bahia, com uma história de há séculos
erigida pela força afro-brasileira; paramos no dia seguinte em Porto Seguro, um
shopping a céu aberto carregado pela força de primeira cidade dos
“descobrimentos”. Descobrimos que a paciência deveria ser o bem mais precioso
que todas as minas gerais a serem cruzadas. Fomos, então, para a nossa segunda
grande parada: Vitória-Cariacica-Vila Velha, no Espírito Santo. Na casa da
família Zanotti encontramos todo o afeto possível: do cão labrador Tody, aos
pais de nosso irmão Tiago, que nos receberam de braços abertos. E o Rendez-vouz,
onde temos uma foto estampada como os maiores bebedores de cachaça que já
melaram a goela naquele bar. Nossa travessia ganhava corpo e o corpo ainda não
trazia qualquer cansaço. Fomos para o Rio de Janeiro, mais irmãos ganhamos nos
três dias que ficamos ali: Gabraz e Anne. Num velho casarão do Catete
atravessamos a novidade que a amizade e fraternidade trazem para nossa vida.
Depois de bebermos com Drummond de Copacabana e Noel Rosa de Vila Isabel,
seguimos para Minas Gerais. Nosso susto! Paramos em Barbacena, ainda inebriados
de contentamento com tantos irmãos novos, e nos deparamos com a loucura do
mundo, a loucura do holocausto brasileiro no complexo de manicômios de
Barbacena. Uma bordoada na nuca que só foi recuperada nas ladeiras de Ouro
Preto, com a coxinha do Barroco e a beleza das Geraes. Ficamos na República
Tabu e a sorte nos guiava na travessia. Muitas filmagens. Trabalho excessivo de
quem queria conhecer tudo em poucos minutos, de quem queria abarcar os corações
todos em uma travessia. Cansaço! Fomos para Belo Horizonte. Na família Prado,
fomos recebidos pelo nosso irmão Luís, o mineiro. Conhecemos ainda o Flamingo e
a Andréa. Uma irmandade multiplicava nossos quatro corações em mais afetos.
Três dias depois de ficarmos na capital mineira, partimos rumo ao planalto
central. Paramos ainda em Cordisburgo, a terra de Guimarães Rosa, de tanto riso
e tanto choro, emoção incontida, fiquei perdido às margens do Grande Sertão.
Revi minha vida e me sabia rumando ao Liso Do Sussuarão. Em Paracatu, cidade
meio goiana meio mineira, comemoramos o aniversário de Ythallo no mais original
modo caririense: Ypióca, tira-gosto, poesia e piadas a perder de vista.
Partimos. Luciano Lourenço, testemunha de nosso cansaço, nos recebeu na capital
federal, deu-nos ânimo extra e seguimos rumo casa. Paramos ainda numa
cidadezinha do Goiás e entramos novamente na Bahia. O carro parou, demonstrando
mais cansaço que nós quatro juntos. Nossa bateria estava fraca, mas a do carro
morreu completamente. Fomos resgatados pelo seguro do carro até chegar a São
Raimundo Nonato que é nossa casa, pois casa de Judson e Manu. Novos velhos
afetos. Em Oeiras encontramos Thascira, minha Thascira, que nos deu suporte
para o último trajeto até chegarmos em casa. Casa! Casa? Alguns dias depois de
terminada a travessia, pergunto-me se “casa” não é a hora em que abríamos as
caixas de comida e tirávamos os macarrões instantâneos, esquentávamos a água;
ou quando o prato de um estava sujo e o outro lavava; quando o copo de um
estava no fundo da mala e usava-se o de outro; ou quando o cigarro de um
acabava e o cigarro de outro era o de todos; ou quando o medo de um era
sufocado pelo abraço, pela piada, pela determinação. Pergunto-me, agora, que
casa? Minha casa é nos braços de meus amigos, meus irmãos. Minha casa é afetos.
Harlon Homem de Lacerda Sousa
Juazeiro do Norte, 22 de janeiro
de 2014.